sexta-feira, fevereiro 27

Nação Maracatu Gato Preto


Recife - Carnaval 2009


conto africano de fadas




era uma vez uma princesa
que perdeu
o medo de se perder
caiu na estrada
foi estuprada
relaxou gozou
gerou uma boneca de louça
e teria ficado solteira
se não tivesse encontrado
um príncipe encarnado
vindo do oriente
que é lugar diferente
de todos os conhecidos
neste reino sisudo
em que fomos criados.

o príncipe trouxe um palácio
nas corcovas de mil camelos
trouxe um oceano nos olhos
palmeiras nos cabelos
nas mãos trouxe jardins
para as mulheres jóias e flores
às moças contava segredos
aos rapazes bravatas
prometeu ao rei um reino
que seria o mundo inteiro
e não caberia no mapa
e que em troca só queria
a princesa e a boneca
a que chamava Calunga
e venerava como a uma deusa.

mas o rei
desconfiado
da lábia do forasteiro
convocou reunião
do conselho dos feiticeiros
na qual ficou decidido
conceder a mão da princesa
mas negar a Calunga
pois concluíram
que se o príncipe a venerava
decerto era mais preciosa
que todas as terras do mundo
que o mais rico tesouro
que o bezerro de ouro
que adoravam no reino.

naquele dia distante
do céu desceu uma estrela
e dela uma Nação de Calungas
nos ombros de negras lindas
vestidas como rainhas
uma vermelha outra verde
uma branca outra dourada
de todas cores haviam
e todas dançavam contentes
ao som do baque virado
alfaias atabaques bongôs
caixas abes agogôs
e nasceu o maracatu
que se ouve em Pernambuco
e que quase me deixa maluco.



Fred Matos
27/02/2009

Nana Vasconcelos no maracatu



Caminhávamos (Eu, Dila, Amon e Fernanda) para o Marco Zero, no bairro do Recife Antigo, no dia 20, sexta-feira, para assistir a abertura oficial do Carnaval, quando ouvimos, vindo da rua da Assembléia, o som de um maracatu. Só quase no fim da filmagem foi que vi que Nana Vasconcelos comandava a folia.


quinta-feira, fevereiro 26

clique - Galo da Madrugada


Galo da Madrugada
Símbolo do Carnaval de Recife
Fotos: Fred Matos







quinta-feira, fevereiro 19

inté +


Pessoas, 
logo mais pego a estrada para o carnaval do Recife onde, provavelmente, não terei acesso à Internet.
Boa farra para todos.


contrapondo


ilustração: Michael Swertfager


pata põe
cobra põe
galinha põe
lagarta põe

o sol se põe

Edgar Allan não põe
Edgar Allan Poe



Fred Matos
19/02/2009

a música das horas e horas e meias


Gal Costa

Sua estupidez






Composição: Roberto Carlos / Erasmo Carlos


Meu bem
Meu bem
Você tem que acreditar em mim
Ninguém pode destruir assim
Um grande amor
Não dê ouvidos à maldade alheia
E creia
Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo
Meu bem
Meu bem
Use a inteligência uma vez só
Quantos idiotas vivem só
Sem ter amor
E você vai ficar também sozinha
E eu sei porque
Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo
Quantas vezes eu tentei falar
Que no mundo não há mais lugar
Prá quem toma decisões na vida sem pensa
Conte ao menos até três
Se precisar conte outra vez
Mas pense outra vez
Meu bem
Meu bem
Meu bem
Eu te amo

Meu bem
Meu bem
Sua incompreensão já é demais
Nunca vi alguém tão incapaz
De compreender
Que o meu amor é bem maior que tudo
Que existe
Mas sua estupidez não lhe deixa ver
Que eu te amo

quarta-feira, fevereiro 18

clique - Convento de Nossa Senhora da Penha - Vila Velha (ES)


Fotos: Fred Matos








Existia no norte da Espanha, uma serra muito alta e íngreme chamada Penha de França, na qual o rei Carlos Magno teria lutado contra os mouros desbaratando-os.

Por volta de 1434, certo monge francês sonhou com uma imagem de Nossa Senhora que lhe apareceu no topo de uma escarpada montanha, cercada de luz e acenando para que ele fosse procurá-la.

Simão Vela, assim se chamava o monge, durante cinco anos andou procurando a mencionada serra, até que um dia teve indicação de sua localização e para lá se dirigiu. Após três dias de intensa caminhada e escalando penhas íngremes, o monge parou para descansar, quando viu sentada perto dele uma formosa senhora com o filho ao colo que lhe indicou o lugar onde encontraria o que procurava. Auxiliado por alguns pastores da região, conseguiu achar a imagem que avistaram em sonho.

Construiu Simão Vela uma tosca ermida nesse local, que logo se tornou célebre pelo grande número de milagres alcançados por intermédio da Senhora da Penha, e mais tarde ali foi construído um dos mais ricos e grandiosos santuários da cristandade.

Em Portugal, o culto de Nossa Senhora da Penha iniciou-se após a batalha de Alcácer-Quibir, de tão triste memória, na qual perdeu a vida o rei D. Sebastião. Entre os portugueses que conseguiram escapar da escravidão muçulmana encontrava-se um escultor chamado Antônio Simões, o qual, no mais aceso da peleja, prometeu à Virgem Santíssima fazer-lhe sete imagens se Ela o conduzisse novamente à sua Pátria. Fiel ao seu voto, iniciou logo o trabalho, esculpindo seis figuras com os respectivos títulos. Ao chegar à sétima e não sabendo que invocação dar-lhe, foi aconselhado por um padre jesuíta a fazer a imagem de Nossa Senhora da Penha, cujos milagres eram muito comentados em Castela.

Aceitando a sugestão, o escultor luso executou a obra e colocou-a na ermida da vitória, mas algum tempo depois resolveu edificar-lhe uma igreja em local próximo a Lisboa e que mais tarde se tornou conhecido como Penha de França.

Naquela época, uma peste assolou o país e como a Espanha se livraria do flagelo graças à intervenção de Nossa Senhora da Penha, o Senado da Câmara de Lisboa prometeu à Mãe de Deus construir-lhe um grandioso templo, se Ela livrasse a cidade da moléstia. Extinguiu-se a epidemia quase subitamente, a Câmara mandou edificar magnífico santuário naquele local.

Este tempo passou a atrair milhares de peregrinos e em certa ocasião um devoto, tendo subido ao alto da penedia, vencido pelo cansaço adormeceu. Uma grande cobra aproximou-se para picá-lo quando um enorme lagarto saltou sobre ele despertando-o a tempo de matar a serpente com seu bastão. Essa é a razão pela qual a imagem de Nossa Senhora da Penha tem aos pés um peregrino, a cobra e o lagarto.

Como quase todos os títulos da Virgem Maria registrados no Brasil no período colonial, o culto de Nossa Senhora da Penha foi trazido por marujos portugueses e aqui tomou grande impulso, devido à devoção dos lusitanos emigrados que transpuseram para nossa pátria os seus costumes e devoções.

Um dos mais famosos templos brasileiros dedicados a esta invocação é o de São Paulo. Segundo os antigos cronistas, um viajante francês seguia de Piratininga para o Norte, levando em sua bagagem uma imagem de Nossa Senhora da Penha de França. Ao passar pelo morro chamado então Aricanduva, parou para descansar. Ao continuar o trajeto no dia seguinte, notou a falta da santa. Voltou para procurá-la e foi encontrá-la no lado do morro de Aricanduva. Guardou a imagem no baú e prosseguiu viagem, mas, ao chegar no pouso seguinte, notou a falta da efígie, que foi encontrada novamente no local onde pousara. Este fato repetiu-se várias vezes e ele, vendo nisso a vontade do céu, ali plantou uma pequena ermida.

O padre Jacinto Nunes, filho de um dos primeiros habitantes de São Paulo de Piratininga, transferiu a imagem e a capela para o alto do morro onde se encontra a secular matriz da Penha. Não sabemos exatamente a data da fundação deste templo, mas é certo que em 1667 ela já existia e era cercado de alpendres como as mais antigas igrejas do Brasil. Em 1687 o bispo D. José de Barros alarcão quis transferir a imagem de Nossa Senhora da Penha para um recolhimento, mas as mulheres do bairro se revoltaram e a Padroeira ali permaneceu.

Ela é atualmente a Protetora da cidade de São Paulo e sua igreja está coberta de promessas e ex-votos.

A ermida da Penha, no Rio de Janeiro, foi fundada no início do século XVII pelo capitão-mor Baltasar Cardoso, senhor de um engenho de açúcar naquela localidade, tendo sido substituída pelo atual templo construído no século XIX, que se avista de todo o litoral da Guanabara.

A festa de Nossa Senhora da Penha realiza-se no Rio de Janeiro em outubro e é a solenidade religiosa mais popular da bela metrópole guanabarina. Centenas de peregrinos vindos de várias partes da Cidade Maravilhosa e de outros Estados sobem devotamente os 365 degraus cavados na rocha, a fim de agradecerem à Virgem Maria alguma graça alcançada, ou para rogarem pela saúde de seus entes queridos. Esta festividade, que se celebra desde 1713, é sempre acompanhada de folguedos populares e animada pelas músicas e danças em homenagem à Santa Padroeira. Atualmente, entretanto, ela tomou nova feição e ganhou maior colorido e afluência, devido às obras de reforma e melhoramento do parque da Penha, empreendidas pelo governo do antigo Estado da Guanabara.

A história e a lenda de Nossa Senhora da Penha de Vitória, no Espírito Santo são ainda mais antigas que as da ermida paulista.

Num belo dia de maio do ano de 1535, em terras goitacás no meio da mata, onde se podia ouvir o grito dos papagaios, e o farfalhar das folhas das árvores gigantescas, um ruído estranho ecoou pelos ares. Era um tiro de canhão, talvez o primeiro a ser ouvido em plagas capixabas. A caravela "Glória" acabava de fundear na enseada da futura Vila Velha, trazendo o donatário Vasco Fernandes Coutinho, fidalgo português que havia deixado sua abastada Quinta no Alenquer para tomar posse da capitania, à qual deu o nome de Espírito Santo.

A esperança que o dominava ao desembarcar nas praias do Novo Mundo foi aos poucos se apagando devido às lutas entre colonos e naturais da terra e Vasco Coutinho mandou vir do Reino alguns padres a fim de pacificá-los. Entre os missionários que ali chegaram durante o governo do inditoso donatário, estava o Frei Pedro Palácios, franciscano espanhol, que trazia em sua bagagem um belíssimo painel de Nossa Senhora, o mesmo que ainda existe no convento da Penha de Vitória. Na azáfama do desembarque, não notaram os companheiros o desaparecimento do santo frade e somente após dois dias acharam-no numa gruta ao pé da montanha, onde havia exposto o painel da Virgem, convidando os fiéis à prece e à meditação.

Certo dia os devotos não encontraram Frei Pedro e nem o painel. Pelo latido do cãozinho que sempre o acompanhava, descobriram-no na escarpa do morro que domina a bela baía de Vitória. Contou então que o painel havia desaparecido e ele estava a procurá-lo. Após ingentes esforços, um grupo de pessoas conseguiu atingir o cume do monte e ali, entre duas palmeiras, encontraram a pintura. Religiosamente foi a tela reconduzida à gruta, mas diante do ocorrido, Frei Pedro iniciou a construção da Igreja dedicada a São Francisco, na chapada, junto ao cume da montanha e para lá levou o painel de Maria.

A imagem de São Francisco lá ficou, mas o quadro da Virgem novamente desapareceu sendo encontrado ainda uma vez no píncaro, entre as duas palmeiras. Resolveu então o frade construir uma ermida no cume de penhasco, e ele mesmo, velho e alquebrado, carregou os primeiros materiais até o lugar da capela. Realizado o seu grande sonho, a igreja foi solenemente inaugurada a 1º de maio de 1570, e, enquanto se elevavam os foguetes e as manifestações de alegria dos que ali se encontravam, subiu ao céu a alma de Frei Pedro Palácios ao som dos sinos da ermida da Penha.

Após a morte de Frei Palácios, a ermida ficou a cargo de alguns devotos e amigos, que a conservaram. Esta situação perdurou até 1591, quando as autoridades de Vila Velha e de Vitória decidiram entregar a Capela da Penha aos Frades Franciscanos. Desde então, os filhos de São Francisco aumentaram a capela, e a transformaram no célebre Santuário. Em fins de 1651 teria sido lançada a pedra fundamental do Convento de Nossa Senhora da Penha. O Conventinho teve sua construção rematada em 1660 necessitando, a partir de então, de constantes melhorias e reparos.

A Festa da Penha, com romarias e afluência de devotos de todo o Brasil, acontece na primeira segunda-feira após a Páscoa. Um grande incentivador da festa foi Frei João Nepomuceno Valadares, natural de Vitória, que destacou-se como restaurador do Santuário do Convento, realizando obras de grande vulto nos anos de 1853 a 1862. Faleceu em 1865 e foi enterrado numa parede interna do Convento de São Francisco de Vitória, bem em frente à porta da sacristia.

Texto copiado do site: http://www.clerioborges.com.br/convento.html


a borboleta e o asno


não sei quem é o autor da foto



entre o caos e a calmaria
a borboleta baila e o asno
carrega carga na cangalha

se o poema fosse filosofia
ela apesar de leve choraria
ele suado seguiria cantando

pois são assim as mensagens
que se dizem edificantes

mas o poema é um retrato:
a borboleta voou pra longe
o asno sumiu do outro lado

foi só isso que ficou na memória
não sei portanto o fim da história



Fred Matos
18/02/2009

a música das horas e horas e meias


Sophie Zelmani

Fade





Fade you star
Fade from my heaven
Fade for the promise
Of forgetting
If I stared and you'd
Be shining through
I would probably still see you

Farewell my guest
You were the only one
Who saw the door
Might be open
If I only could have
Told you then
That the lock just was broken

There was no place
There was no time
There was no place
There was no time


o lúdico na poesia


Foto: Fred Matos


Hoje fui surpreendido com a minha inclusão em um artigo da  HERCÍLIA FERNANDES, no BLOG “novidades & velharias”, no qual ela fala dos poemas lúdicos.

Envaideceu-me a citação e a inclusão entre três ótimos poetas: O Lau Siqueira, que é um velho amigo e do qual sou fã há muitos anos, o Marcelo Novaes, que venho lendo nos últimos meses, e o Fernando Cisco Zappa, que fiquei conhecendo agora e passarei a acompanhar.

Abaixo o link para o artigo: 

Poesia para crianças?... o lúdico na Blogosfera


Obrigado, Hercília.

 

terça-feira, fevereiro 17

herança



Foto: Fred Matos


para Guido Guerra



sou o parvo que lavra palavras
como sementes em solo estéril.
a vida que levo é um escárnio:
não há quem me leve a sério.
mitigo na alma a tristeza atávica
que levou meu pai ao cemitério.

para iludir a fatalidade, inscrita
nos cromossomos que herdei,
faço mistério dos sentimentos
e com o âmago esfarrapado
da dissimulação faço a lei.

mas, quando cai a madrugada,
me entrego às fantasias
para cumprir a minha sina
e -anônimo - em versos pálidos
revelo os anseios e taras
de uma alma caftina.



Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999

clique - Buenos Aires





Fotos: Fred Matos

a música das horas e horas e meias



Maria Rita

Sobre Todas as Coisas





Composição: Edu Lobo/Chico Buarque de Hollanda


Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus

Ao Nosso Senhor
Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor
Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor
Criado pra adorar o Criador

E se o Criador
Inventou a criatura por favor
Se do barro fez alguém com tanto amor
Para amar Nosso Senhor

Não, Nosso Senhor
Não há de ter lançado em movimento terra e céu
Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
Pra circular em torno ao Criador

Ou será que o deus
Que criou nosso desejo é tão cruel
Mostra os vales onde jorra o leite e o mel
E esses vales são de Deus

Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus



segunda-feira, fevereiro 16

lições do mar - 3. cogito


breves anotações para uma doutrina da abstração



Foto: Fred Matos



compreendo o mar como uma equação de Laplace
cuja função interpoladora é um polinômio de Legendre

apenas e nada mais que a pura e majestosa matemática
nada deste papo furado de luares náufragos e navegantes

obviamente que não faz diferença alguma
já que não sei de números nem de náutica

afogados não cogitam de ciência ou poesia.



Fred Matos
16/02/2009


a música das horas e horas e meias




Simone

Gota d’água






Composição: Chico Buarque

Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água...(2x)

Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
Pode ser a gota d'água
Pode ser a gota d'água....


domingo, fevereiro 15

no oco da poesia



foto: Fred Matos


n
ão conheço estas pessoas:
o moço que me chama pai
com o olhar de mágoa ou ódio,
a menina que se atira ao meu colo,
cofia a minha barba,
baba minha camisa
me chama avô.

a casa, porém, não me é estranha:
há quadros pendurados nas paredes
que me lembram pessoas
cujos nomes já não me recordo,
mas com fisionomias
que parecem grudadas
nas minhas lembranças mais remotas.

não sei se posso dizer
que parece um sonho,
não é um sonho,
ainda que tudo sugira ocorrer
em câmara lentíssima.

os livros, sim, conheço-os
como a palma da minha mão.

tenho na lembrança uma imagem
- provavelmente sou eu aquele rapaz -
na qual descíamos
- ela, quem é ela? qual o seu nome? -
mãos dadas até o cais do lago.

levitávamos sobre palavras
que fluíam fáceis e fúteis
e ainda creio ouvir o eco
dos planos para um futuro
que é agora um passado mais recente,
mas do qual não me recordo.

o médico me trata
como se fôssemos velhos amigos,
receita-me comprimidos
e insiste que eu escreva,
que procure recordar,
que lance ao papel
qualquer resquício de memória.

mas estou muito cansado para continuar
todas as lembranças são fantasias vazias
e prefiro me deixar cair no esquecimento
como palavras confusas no oco da poesia


Fred Matos
15/2/2009


sábado, fevereiro 14

que me esqueça


ilustração: Peter Gric - bild220



espero a morte como se ela viesse serenamente
anunciar-me que é a hora de um último poema
e vendo-me hesitante na escolha das palavras
sugerisse-me a alternativa de um tema diferente

e além disso que pudesse iluminar a minha mente
fazendo-me recordar de cada esquecido instante
incentivando-me contudo a olhar para diante
como se a morte não fosse o fim, fosse somente

um passo a cumprir em uma infinita caminhada
da qual cada etapa fosse melhor que a cumprida
assegurando-me que há outra vida após a vida
e que a minha incredulidade é a escolha errada

sempre ansiei que a minha razão não prevaleça
como isso é duvidoso: que a morte me esqueça.


Fred Matos
14/02/2009

clique - à beira-mar


Pescadores na praia de Paripueira (Alagoas)

Fotos: Fred Matos






a música das horas e horas e meias


Janis Joplin

Kosmic Blues

 

Composição: Janis Joplin e Gabriel Mekler

 
Time keeps movin' on,
Friends they turn away.
I keep movin' on
But I never found out why
I keep pushing so hard the dream,
I keep tryin' to make it right
Through another lonely day, whoaa.

Dawn has come at last,
Twenty-five years, honey just in one night, oh yeah.
Well, I'm twenty-five years older now
So I know we can't be right
And I'm no better, baby,
And I can't help you no more
Than I did when just a girl.

Aww, but it don't make no difference, baby, no, no,
And I know that I could always try.
It don't make no difference, baby, yeah,
I better hold it now,
I better need it, yeah,
I better use it till the day I die, whoa.

Don't expect any answers, dear,
For I know that they don't come with age, no, no.
Well, ain't never gonna love you any better, babe.
And I'm never gonna love you right,
So you'd better take it now, right now.

Oh! But it don't make no difference, babe, hey,
And I know that I could always try.
There's a fire inside everyone of us,
You'd better need it now,
I got to hold it, yeah,
I better use it till the day I die.

Don't make no difference, babe, no, no, no,
And it never ever will, hey,
I wanna talk about a little bit of loving, yeah,
I got to hold it, baby,
I'm gonna need it now,
I'm gonna use it, say, aaaah,

Don't make no difference, babe, yeah,
Ah honey, I'd hate to be the one.
I said you're gonna live your life
And you're gonna love your life
Or babe, someday you're gonna have to cry.
Yes indeed, yes indeed, yes indeed,
Ah, baby, yes indeed.

I said you, you're always gonna hurt me,
I said you're always gonna let me down,
I said everywhere, every day, every day
And every way, every way.
Ah honey won't you hold on to what's gonna move.
I said it's gonna disappear when you turn your back.
I said you know it ain't gonna be there
When you wanna reach out and grab on.

Whoa babe,
Whoa babe,
Whoa babe,
Oh but keep truckin' on.
Whoa yeah,
Whoa yeah,
Whoa yeah,
Whoa,
Whoa,
Whoa,
Whoa,
Whoa...

 

sexta-feira, fevereiro 13

clique - diamantina


Diamantina (MG)
Fotos Fred Matos









a música das horas e horas e meias


Chico Buarque e MPB4

Roda Viva




Composição: Chico Buarque


Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...

A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...

No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

quinta-feira, fevereiro 12

helena


não sei quem é o autor da foto


poderiam ser motivo destes versos
os tenros mamilos de uma deusa pagã
se eu soubesse algo acerca de divindades
e se os mamilos me fossem oferecidos
sem os desígnios ocultos que os deuses
e as mulheres têm quando nos mimam

mas a volúpia exige sangue e lágrimas e eu
já não me disponho a doar sequer suor
palavras, sorrisos, coisa alguma que seja
em troca de algo cujo preço nunca é justo

prefiro ir ao cinema assistir Sienna Guillory
que é tal qual eu imaginava a bela Helena
desde a primeira vez que li e a vi na Ilíada

mas nem por ela uma guerra vale a pena


Fred Matos
12/2/2009

a música das horas e horas e meias


Cat Power

Lived In Bars








We've lived in bars
And danced on tables
Hotel trains and ships that sail
We swim with sharks
And fly with aeroplanes in the air

Send in the trumpets
The marching wheelchairs
Open the blankets and give them some air
Swords and arches bones and cement
The light and the dark of the innocent of men

We know your house so very well
And we will wake you once we've walked up
All your stairs

There's nothing like living in a bottle
And nothing like ending it all for the world
We're so glad you will come back
Every living lion will lay in your lap
The kid has a homecoming the champion the horse
Who's going to play drums, guitar or organ with chorus
As far as we've walked from both of ends of the sand
Never have we caught a glimpse of this man

We know your house so very well
And we will bust down your door if you're not there

We've lived in bars
And danced on tables
Hotel trains and ships that sail
We swim with sharks
And fly with aeroplanes out of here


quarta-feira, fevereiro 11

dispersão



"(...)  Resta a cama e as janelas
numa casa que nos torna vulneráveis,
e o horizonte que vemos das vidraças
é outra casa igual,
e a alcova cansa, e ao fim do dia é
a cama onde dormimos, esgotados."

Nuno Dempster




ilustração: Pieta No. 1 - Jan Saudek


para o poeta Nuno Dempster



Incapaz de voltar a dormir, maldita insônia,
e cansado de romances cuja trama caberia
de sobejo em um conto de cem linhas,
entreguei a noite ao livro de Nuno Dempster
com a pompa que dedicaria a uma sinfonia
e a atenção de quem teme deixar-se iludir
em barganha no grande bazar de Istambul

Enfim chegou-me às mãos um livro de poesia.
De uma poesia substantiva, coesa, madura,
nada análoga aos poemas datados e vagos
que parecem vir ao mundo como alucinações,
nem a outros que são lágrimas sentimentais,
baldes de amarguras, ou experimentos informes,
além de uns logros que são somente má piada.

Não há na poesia de Nuno dispersão alguma,
e após a leitura dos vinte primeiros poemas
eu já sabia que invadiria a madrugada, à mesa,
sublinhando lições de vida, de ritmo, de arte,
trechos para voltar, citar, talvez imitar se um dia
tiver coragem de um mergulho tão profundo
e paciência para lapidar, como jóia, cada verso.

Conquanto seja difícil abandonar a sua leitura,
não é um livro fácil, tal são alguns que ao cabo
parece que o tempo passou e nada aconteceu.
Há que ter cultura para entender as referencias
a locais, mitologias, circunstâncias, personagens,
ou disposição para pesquisar, preencher claros,
consultar na internet, enciclopédias, dicionários.

Eu estava na metade das quase trezentas páginas
quando amanheceu e a força da responsabilidade
me obrigou a fechar o livro, a vir para o trabalho.
Poucas vezes, porém, um dia se tornou tão lento,
e para ver se passa mais rápido é que me propus
a dizer nestes versos a satisfação que eu tive.
E a que terei quando estiver lendo o outro meio.


Fred Matos
11/02/2009



Nuno Dempster é proprietário do blog
A Esquerda da Vírgula onde se pode obter informações para aquisição do livro "Dispersão" Poesia Reunida.

clique - traço do arquiteto - Oscar Niemeyer







Edifício Niemeyer - Praça da Liberdade - BH (MG)
Fotos: Fred Matos

terça-feira, fevereiro 10

a música das horas e horas e meias


Jane Birkin & Serge Gainsbourg
Je t'aime moi non plus







Composição: Serge Gainsbourg

- Je t'aime je t'aime
Oh oui je t'aime
- Moi non plus
- Oh mon amour
- Comme la vague irrésolue
Je vais, je vais et je viens
Entre tes reins
Je vais et je viens
Entre tes reins
Et je me retiens

- Je t'aime je t'aime
Oh oui je t'aime
- Moi non plus
- Oh mon amour
Tu es la vague, moi l'île nue
Tu vas, tu vas et tu viens
Entre mes reins
Tu vas et tu viens
Entre mes reins
Et je te rejoins

- Je t'aime je t'aime
Oh oui je t'aime
- Moi non plus
- Oh mon amour
- L'amour physique est sans issue
Je vais je vais et je viens
Entre tes reins
Je vais et je viens
Je me retiens
- Non ! maintenant viens...



segunda-feira, fevereiro 9

lições do mar - 2. caminhos


breves anotações para uma doutrina da abstração



Foto: Fred Matos


não é motivo
nem razão
a força é conseqüência

habilidade: solução.


Fred Matos
9/2/2009

clique - à beira-mar - praia do francês


Praia do Francês

fotos: Fred Matos












A Praia do Francês é provavelmente a mais movimentada do litoral alagoano. Situada a cerca de 20 km de Maceió é um distrito do município de Marechal Deodoro, cuja cidade, a 8 km da Praia do Francês, é tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional.
Caracteriza-se por ser dividida em duas partes: uma ao Norte, cercada por recifes de coral, com águas calmas e, a parte Sul, na qual fiz estas fotos, com mar aberto e ondas fortes.


quem conta um conto


Continuando as traduções de Julio Cortázar



Bruxa é o segundo conto de “Historias de Gabriel Medrano”, que, dedicada a Jorge D’Urbano Viau, é a segunda parte, de três, do livro “La otra orilla”. 
As outras partes são "Plagios y traducciones" e "Prolegómenos a la Astronomía".


As traduções dos contos de Cortázar publicados no blog estão nos seguintes links: 

De "Plagios y traduciones":


De "Historias de Gabriel Medrano":




Bruxa

Julio Cortázar

Tradução: Fred Matos
a partir do texto publicado nas páginas 66 a 72 de “Cuentos Completos/1” Decimoquinta reimprésión: junio de 2007, Editora Alfaguara – Buenos Aires – AR



ilustração: Scarlett Johansson
Foto de Annie Leibovitz


Deixou cair as agulhas sobre seu colo. A cadeira de balanço se moveu imperceptivelmente. Paula teve uma das suas estranhas sensações que a acometem de tempos em tempos; a necessidade imperiosa de apreender tudo o que seus sentidos possam alcançar nesse instante. Trata de ordenar imediatamente suas intuições, identificá-las e torná-las conhecimento: movimento da cadeira de balanço, dor no pé esquerdo, coceira na raiz do cabelo, gosto de canela, canto do canário flauta, luz violeta na janela, sombras de ambos os lados da peça, cheiro de velho, a lã, um maço de cartas. Só está concluída a análise quando a invade uma violenta infelicidade, uma opressão física como um bolo histérico que sobe para os maxilares e impulsiona-a a correr, a sair, a mudar de vida; coisas que uma profunda inspiração, fechando dois segundos os olhos e chamando-se a si mesma de estúpida bastam para anular facilmente.
A juventude de Paula era triste e silenciosa, como ocorre a todos os jovens que preferem a leitura aos passeios pela praça, desdenhando pretendentes regularmente e se submetendo ao espaço de uma casa como suficiente dimensão de vida. Por isso, ao afastar agora os olhos claros do tecido - um pulôver cinza simplíssimo -, se acentua em seu rosto a sombria conformidade de quem alcança a paz através da moderação do raciocínio e não com a alegre desordem de uma existência total. É uma menina triste, boa, solitária. Tem vinte e cinco anos, terrores noturnos, alguma melancolia. Toca Schumann no piano e às vezes Mendelssohn; não canta nunca, porém sua mãe, já morta, uma vez recordou havê-la ouvido assobiar fracamente quando tinha quinze anos, à tarde.
- Seja como for - pronunciou Paula -, eu gostaria de ter aqui alguns bombons.
Ela sorri ante a fácil e vantajosa substituição de desejos; sua horrível ansiedade de fuga foi resumida em um modesto capricho. Mas deixa de sorrir como se lhe arrancassem a risada da boca: a recordação da mosca se associa ao seu desejo, trazendo um inquieto tremor a suas mãos vazias. 

    
Paula tem dez anos. A lâmpada da sala de jantar semeias piscadelas vermelhas na sua nuca e no cabelo curto. Acima dela - que os sente altíssimos, distantes, impossíveis - seus pais e o velho tio discutem questões incompreensíveis. A empregada negrinha colocou na frente de Paula o inapelável prato de sopa. É preciso comer, antes que a testa da mãe enrugue com surpreendido desgosto, antes que o pai, à sua esquerda, diga: "Paula", colocando nesta simples nominação uma velada sorte de ameaças.  
Comer a sopa. Não tomá-la: comê-la. É espessa, de sêmola morna; ela odeia a massa esbranquiçada e úmida. Pensa que se a casualidade trouxesse uma mosca e precipitasse-a no grande pântano amarelo do prato, lhe permitiriam suprimi-lo, lhe salvaria do abominável ritual. Uma mosca que caísse no seu prato. Nada mais que uma pequena mísera mosca opalina. 
Intensamente tem os olhos postos na sopa. Pensa em uma mosca, deseja-a, espera-a. 
E então a mosca surge no centro exato da sêmola. Viscosa e lamentável, arrastando-se uns milímetros antes de sucumbir queimada.
Levam o prato e Paula está salva. Mas ela jamais confessará a verdade; jamais dirá que não viu a mosca cair na refeição. A havia visto aparecer, que é diferente.


Porém abalada pela lembrança, Paula se pergunta a razão de não haver insistido, alcançando a segurança do que suspeitamos. Tem medo: essa é a resposta. Toda a sua vida teve medo. Ninguém acredita em bruxas, mas se descobrem uma matam-na. Paula tem guardado no vasto cofre dos seus muitos silêncios uma íntima segurança; algo lhe diz que ela pode. Deixou-se ir na infância entre balbucios e esperanças; está vendo passar sua juventude como uma tristíssima diadema suspensa no ar por mãos vacilantes, desfolhando-se lentamente. Sua vida é assim; tem medo, queria comer bombons. Os pulôveres e as mantas se amontoam nos armários; também as toalhas finamente concebidas com motivos de Puvis de Chavannes (1). Relutante em adaptar-se às pessoas; Raul, Atilio González, o pálido Renê, são testemunhas do passado; quiseram-na, procuraram-na, ela lhes sorriu ao rechaçar-los. Temia-os como a si mesma.
- Seja como for, eu gostaria de ter aqui alguns bombons.
Está sozinha em casa. O velho tio joga bilhar em o Tokio. Paula começa a sentir a tentação, pela primeira vez intensa até dar-lhe náuseas. Por que não, porque não. Afirma perguntando, pergunta ao afirmar. É fatal, deve ser feito. E como aquela vez, concentra seu desejo nos olhos, projeta o olhar sobre a mesa baixa posta ao lado da cadeira de balanço, ela se lança toda atrás do seu olhar até sentir a si mesma como um vazio, um grande molde oco anteriormente ocupado, uma evasão total que a desengaja de seu ser, projeta-a em vontade...
E vê surgir pouco a pouco a materialização do seu desejo. Finas lâminas rosadas, reflexos tênues de papel de prata com listas azuis e vermelhas; brilho de moedas, de nuances polidas; escura concentração de chocolate perfumado. Todo ele transparente, diáfano; o sol que alcança a borda da mesa percute a crescente massa, cheia de translúcidas penetrações; mas Paula corrige infundindo mais vontade em sua obra e irrompe finalmente a opacidade triunfante da matéria criada. O sol é rejeitado em todas as superfícies polidas, as palavras dos invólucros se afirmam categóricas: e revela-se uma pirâmide de bombons finos: Praline, Moka, Nogates, Rhum, Kümmel, Maroc...


A igreja é grande, colada na terra. As mulheres retardam com fofocas a volta da missa, com o apóio da sombra espessa das árvores frondosas ao desejo de ficar. Viram Paula surgir lindamente vestida de azul, e a contemplaram insidiosas em seu furtivo caminhar solitário. O mistério dessa nova vida as altera, as aliena; apenas pode tolerar-se que o mistério resista a tão detalhadas indagações. O velho tio está morto; Paula vive sozinha na casa. Nunca houve fortuna na família, mas esse vestido azul...
E o anel, porque elas viram o anel cintilante que as vezes, nos intervalos do cinema local, brilha insolentemente quando Paula, mecanicamente, leva de volta uma mecha do seu cabelo castanho.


Paula reza diariamente na igreja do povoado. Reza por si, por seu horrível crime. Reza por haver matado um ser humano.
Era um ser humano? Sim ele era, sim ele era. Como ela pôde deixar-se atrair pela tentação, invadir os territórios do anormal, desejar uma estatueta animada que lhe recordava suas bonecas da infância. O anel, o vestido azul, tudo estava bem; não havia pecado em desejá-los. Mas conceber a boneca viva, sem pensar em renúncia... Aquela madrugada, a figura se sentou na ponta da mesa sorrindo timidamente. Tinha cabelo negro, saia vermelha, corselete branco; era sua boneca Nené, mas estava viva. Parecia uma menina, contudo Paula pressentiu que uma terrível maturidade habitava aquele corpo de vinte centímetros de altura. Uma mulher, uma mulher que seu extravio acabara de criar.
 E então matou-a. Foi preciso apagar a obra que fatalmente seria descoberta e atrairia para ela o nome e o castigo das bruxas. Paula conhecia seu povo; não tinha como fugir. Quase ninguém foge das pessoas, e por isso as pessoas triunfam. De noite, quando a figurinha silenciosa e sorridente dormiu sobre o travesseiro, Paula levou-a à cozinha, colocou-a no forno e abriu a torneira do gás.
Estava enterrada no pátio do limoeiro. Por ela e por si mesma, a assassina rezava diariamente na igreja.


É de tarde, chove. É triste viver sozinha em uma casa. Paula lê pouco, apenas toca piano. Quer algo, não sabe o quê. Queria não ter medo, fugir. Pensa em Buenos Aires; possivelmente em Buenos Aires, onde não a conhecem. Talvez em Buenos Aires. Mas sua razão lhe diz que enquanto se leve a si mesma consigo o medo afogará sua felicidade em qualquer lugar. Fica, então, e possivelmente abençoada. Cria-se um início de confusão, envolve-se na execução de mil pequenos desejos, caprichos minuciosamente destruídos em sua infância e na sua juventude. Agora que ela pode, que pode tudo. Dona do mundo, se apenas se animar a...
Porem o medo e a timidez cingem-lhe a garganta. Bruxa. Bruxa.
Para as bruxas, o inferno.


As mulheres não têm toda a culpa. Se crêem que Paula vende secretamente seu corpo é porque a origem de tão insólito bem-estar lhes é incompreensível. É a questão da sua casa de campo. As roupas e o carro, a piscina, os cães de raça e o casaco de martas. Mas o amante não mora no povoado, seguramente; e Paula quase nunca sai de sua residência. Haverá homens tão pouco exigentes?
Ela colhe os olhares, recolhe comentários pela boca de poucos amigos da família que aparecem às vezes, com a língua livre de perguntas, para beber uma xícara de chá. Sorri tristemente e diz que não se importa, que é feliz. Seus amigos, ex-cortejadores convencidos do impossível, comprovam tanta felicidade no olhar de Paula. Agora há um brilho de fósforo nos seus olhos claros. Quando despeja o chá nas xícaras finas seu gesto tem algo de triunfante, contido por um caráter tímido que envergonha a si mesmo de ostentar as realizações. 
A sós, Paula recorda seu trabalho de demiurgo; a lenta, meticulosa realização dos seus desejos. O primeiro problema foi a casa; ter uma casa nos arredores do povoado, com o conforto que seu ócio reclamava. Procurou o lugar, o ambiente; junto à estrada real, mas não excessivamente próximo. Terras altas, águas sem sal. Criou dinheiro para adquirir a terra e esteve por confiar a um arquiteto a construção da residência. Contudo detinha-a o medo de lidar com questões financeiras, acrescentando suspeitas latentes em todas as saudações, mais precisamente nos muitos silêncios desdenhosos. Uma tarde, a sós em seu terreno, pensou criar a casa mas teve medo. Vigiavam-na; seguiam-na; nos povoados uma casa não surge do nada. Não deve brotar do nada. Havia que socorrer-se de um arquiteto, então; Paula duvidava, amedrontando-se ante cada problema. Ir-se do povoado havia concluído contudo; isso e ser valente: são impossíveis.
Então fez algo grande: criar, não a casa, sim a construção da casa. Aplicando-se noite e dia, conseguiu que a residência fosse edificada sem despertar em ninguém o temido espanto. Criou passo a passo a construção de sua fazenda, e embora houvesse dias em que se perguntou que fariam os trabalhadores ao concluí-la, teve no fim a satisfação de ver que aqueles homens iam embora em silêncio, contando seu dinheiro. Então entrou em sua casa, que era verdadeiramente linda, e se dedicou a mobiliá-la pouco a pouco.
Era divertido: tomava uma revista, em busca de um ambiente que a comprazia, escolhia o lugar exato e criava coisa por coisa dessas imagens prediletas. Tinha gobelinos (2); tinha um tapete persa; tinha um quadro de Guido Reni (3); tinha peixes chineses; cães da Pomerânia, uma cegonha. Os poucos amigos que iam à casa eram recebidos em dependências difusas, de discreto gosto burguês; Paula os esperava cordialmente, levava-os a passear pela casa e jardins, mostrado os crisântemos e violetas; e como ela era a própria discrição, os visitantes bebiam seu chá e deixavam a residência sem descobrir nada de novo.
Integrou uma biblioteca com volumes rosa, tinha quase todos os discos de Pedro Vargas (4) e alguns de Elvira Ríos (5); chegou um momento em que já pouco desejava e seu capricho só encontrou exercício em alguma guloseima, um perfume novo, em seguida, um peixe. Mas depois Paula quis ter um homem que a amasse, e embora vacilasse longo tempo entre receber em seu leito qualquer um dos seus fiéis pretendentes ou em criar um ser que cumprisse em tudo suas românticas visões do passado, percebeu que não havia alternativa e que era forçoso decidir-se pela última. Um amante do povoado faria perguntas, inquiriria até descobrir, mais além do sorriso, o poder da bruxa. E então haveria o terror, a perseguição, a loucura.
Criou seu homem. Seu homem a amava. Era bonito, fino, se chamava Esteban, nunca queria sair da casa: assim tinha de ser. Já totalmente isolada de seus semelhantes, Paula recusou o chá aos amigos e eles pressentiram a presença de um homem na casa. Com tristeza no coração, voltaram para o povoado. 


Ela relembra agora seu trabalho de criação. É quase noite; Paula não está triste, contudo há uma mão fria que se apóia em seu peito, cobrindo o espaço entre os seios com uma forte opressão. “Estou cansada”, se diz. “Eu tenho que pensar tanto, que desejar tanto...”. Compreende, sem palavras, a enorme fadiga de Deus. Ela também necessita do seu sétimo dia para ser completamente feliz.
Esteban se reclina ao seu lado, olhando-a com profundos olhos negros; lhe sorri, quase como uma criança.
- Paula - murmura.
Ela lhe acaricia o cabelo mas sem falar. É difícil não sentir-se maternal com esse rapaz demasiadamente sensível, vazio de todo laço humano, integralmente dedicado à tarefa de adorá-la. Esteban não faz perguntas, parece estar sempre esperando sua voz. É melhor assim. 
E de repente, como uma distante chamada de chifres, Paula tem uma débil mas distinta sensação de estar doente, de que morrerá, de que o sétimo dia vem sem possível atraso.


Quando os dois médicos retornaram ao povoado, era bem pouco o que tinham a dizer. A mesma coisa no dia seguinte. Na tarde do terceiro dia, o carro dos médicos rodeou a praça e parou diante da porta principal do cemitério. 
É então que os amigos de Paula devem lutar contra o desatado rancor de todo um povo cristão. As esposas, as irmãs, os professores da moralidade local; há aqueles que desejam que Paula se corrompa na solidão da sua casa, livre e abandonada como sua vida. O que se escolhe neste mundo há de manter-se no outro. E são poucos, apenas cinco homens silenciosos, os que vêm à noite para a sua residência para velar o corpo da amiga.
Os empregados do cemitério e duas mulheres de fazendas vizinhas puseram a morta no caixão e montaram a capela ardente. Os amigos encontraram, quase sem surpresa, Esteban. Vêem-no pela primeira vez, apertam a sua mão. Esteban parece não compreender; está sentado em uma cadeira de respaldo alto, à direita do cadáver. A intervalos se levanta, vai até Paula e a beija na boca; um beijo fresco, forte, que os amigos contemplam com espanto. O beijo de um jovem guerreiro em sua deusa antes da batalha. Depois Esteban volta ao seu lugar e se imobiliza, olhando para a parede por cima do caixão.
Paula morreu ao entardecer e já é meia-noite. Os amigos estão sozinhos, com ela e Esteban. Fora faz frio e alguns pensam no povoado, em garrafas de água quente e de leite, nos boletins de rádio.
Em semicírculo olham Paula que jaz sem esforço, como por fim libertada de um fardo superior aos seus pequenos ombros que conservaram sempre alguma coisa da forma de uma criança. As larguíssimas pestanas vertem uma pequena sombra cinza sobre as bochechas. Os médicos disseram que a sua morte havia sido lenta mas sem luta, como o amadurecimento de um fruto. E pelos cinco amigos passa, alternadamente o mesmo terno e gasto pensamento: “Parece adormecida”.
Por que entra tanto frio na casa? É repentino, em jatos crescentes. Talvez um frio que vem de dentro, pensam os amigos; às vezes sente-se nos velórios. Um pouco de conhaque... E quando um deles olha para Esteban, rígido na sua cadeira, sente como um horror que repentinamente lhe cresce e lhe invade os cabelos, as mãos, a língua; através do tórax de Esteban está vendo os desenhos do respaldo do sofá. Os outros seguem seu olhar e ficam lívidos. O frio aumenta, cresce como uma maré. Mas além da porta fechada se ergue repentinamente a massa espessa do monte de eucaliptos banhado pela lua; e eles compreendem que o estão vendo através da porta fechada. Agora são as paredes que cedem à paisagem do campo, da fazenda vizinha, tudo sob uma crua luz de lua-cheia, e Esteban é agora um aglomerado de gelatina, belo e triste na sua poltrona que cede como ele ante o avanço do nada. Do teto entra um jorro de luz prateada removendo a nitidez dos resplendores da capela ardente. Pela sola dos sapatos sentem agora os cinco amigos filtrar-se uma umidade de terra fresca, com gramíneas e leguminosas, e quando se olham, incapazes de pronunciar a primeira palavra da revelação, estão a sós com Paula, com Paula e a capela ardente que se ergue nua no meio do campo, sob a lua inevitável.

1943



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Notas do Tradutor:

(1)  Puvis de Chavannes - Pintor francês nascido em 14/12/1824 e falecido em 24/10/1898.

(2) Os gobelinos, ou gobelins, são tapeçarias em tecidos ricamente ilustrados com composições da Manufacture Nationale des Gobelins, na França, desde o século XVIII e ainda hoje em funcionamento. Têm este nome em homenagem a Jean e Philibert Gobelin, tintureiros do século XV, cujas oficinas ficavam nas cercanias de Paris.

(3) Guido Reni foi um pintor italiano de cenas religiosas, populares e mitológicas, bastante apreciadas pela crítica. Nasceu em Bolonha e começou a estudar pintura aos nove anos. Ao redor de 1595, tornou-se discípulo dos Carracci, família de pintores de Bolonha. 
Entre 1600 e 1614, trabalhou principalmente em Roma, onde pintou o Martírio de São Pedro (1601-1603). Entre 1608 e 1609, realizou os afrescos da Igreja de São Gregório Magno, em Roma, e em 1613 levou a cabo sua obra mais conhecida, o afresco Febo e Horas, precedidos pela Aurora, no teto do pavilhão de descanso, no jardim do palácio Rospigliosi, em Roma.
Reni sofreu grande influência da arte clássica e o estilo realista de sua primeira época contrasta com a exuberância barroca de seus contemporâneos.
No museu do Prado, em Madri, conservam-se várias obras suas, como Cupido e a Virgem da cadeira.
Em seus últimos anos, voltou a Bolonha, onde criou sua própria academia, abandonando o realismo por um estilo mais suave e sentimental.

(4) Pedro Vargas Mata, cantor e ator mexicano, alcunhado "El Tenor de las Américas", "El Samurái de la canción", "El Rey", Nasceu em San Miguel de Allende a 29 de abril de 1906 e faleceu na Cidade do México em 30 de outubro de 1989.

(5) Elvira Ríos, cantora mexicana, cuja biografia não consegui encontrar.



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